As histórias fazem mal às
crianças! Porque as educam para a
palavra; e isso é mau. Porque, em vez de lhes falarem de médias ou
de desvios-padrão, as histórias as sensibilizam para ver o mundo e as pessoas,
e as ensinam a conhecer a vida com inteligência e a bondade. Falam-lhes de
bruxas ou de duendes e ajudam-nas a compreender a maldade. E a entender que ela
não vem nem de Marte nem do Inferno mas de pessoas, em quase tudo, parecidas
com o que somos.
As histórias fazem mal às
crianças! Porque as ajudam a
vislumbrar que elas (as histórias, sim) não se lêem nem com a boca nem com os
olhos. Mas com a alma, e isso é mau. Porque faz com que percebam que quem lê
interpreta sentimentos e isso torna as crianças muito perigosas. Porque assim,
no infantário, elas deixam de ler, unicamente, letras e palavras que mal
entendem, repetindo, unicamente (como algumas pessoas generosas, mas
insensatas, exigem que elas façam). E torna-as audazes e atentas. E sagazes.
Tudo aquilo que quem imagina a escola como um paraíso de crianças sossegadas
deseja que não sejam.
As histórias fazem mal às
crianças! Porque se elas crescem em
torno de personagens sem curriculum, sem nome de família e sem referências e,
para mais, de índole duvidosa (como a Carochinha ou o Asterix, o Gato
das Botas ou o Tintin, por exemplo) isso é mau. Porque elas também convivem com D. Afonso
Henriques, com Humberto Delgado ou com D. Dinis e, de repente, elas não
percebem se, também eles, são personagens de histórias de aventuras ou pessoas
da família de quem falam sem veneração mas, estranhamente, com orgulho e com
ternura.
As histórias fazem mal às
crianças! Porque as obrigam a fazer de
conta que acreditam nas personagens ou nos enredos, e que tudo se passou,
seguramente, e com verdade; e isso é mau. Porque o fazem, unicamente, para não
decepcionarem os pais ou outros amigos que lhas contam. E essa bondade,
discreta e elegante, é perigosa. Por mais que haja quem garanta, que são as
histórias quem, magicamente, torna as crianças mais capazes de... acreditar.
As histórias fazem mal às
crianças! Porque lhes dão a
luminosidade de escutar e a fantasia e a audácia de imaginar; e isso é mau.
Porque lhes permite a arte do encontro e o frenesi de pensar em coro, a uma
voz. Tudo aquilo que quem as acha, invariavelmente, hiperactivas ou distraídas
receia que elas sejam.
As histórias fazem mal às
crianças! Porque as torna livres; e
isso é mau. Porque deixam de ser submissas... E, podendo ser perseverantes e
abnegadas, leva a que se movam, sobretudo, pela paixão. E em vez de falarem por
murmúrios amigos do pessimismo (que é uma forma urbana de desconfiar do futuro)
as histórias dão-lhes a História (que faz com que se chegue, no mesmo instante,
ao passado e ao futuro). E esclarecem-nas acerca das façanhas dos avós e as dos
pais que lhes dão o orgulho (de serem parte de si) e a humildade (de lhes
faltar quase tudo para serem como eles) sem as quais nunca se chega à esperança
e ao futuro.
As histórias fazem mal às
crianças! Porque as torna escutadoras;
e isso é mau. Porque em vez de pensarem, unicamente, com a cabeça passam a
ouvir com o coração. E ao levá-las da fantasia à palavra, fazem com que vistam,
de forma simples e transparente, aquilo que sentem ou o que imaginam. E
habilita-as - perigosamente - para não guardarem uma emoção que seja só para
elas.
As histórias fazem mal às
crianças! Porque todas as histórias
são de encantamento; e isso é mau. Porque mesmo as que falam de monstros ou que
lhes tragam calafrios, ou até mesmo aquelas que fazem cócegas nas ideias,
encantam. Porque as levam a comungar (e só isso é encantar) com sentimentos de
que fugimos e com quem os esclarece só para nós. E porque embrulham os medos
num enredo e as deixam guiar-se entre eles, pela mão de alguém (que só pode ser
carinhoso ou especial), as histórias são perigosas porque tornam as crianças
amigas do desconhecido, leais e destemidas. E afoitas, claro.
As histórias fazem mal às
crianças! Porque lhe educam o coração
e as ligam, sobretudo, a quem as lê; e isso é mau. Porque quem lhes conta um
conto se acrescenta a si, num ponto. E desvenda-se e aproxima-se e, com isso,
enternece. E leva as crianças a ancorar no seu olhar e, partindo dele, a
conhecerem-se por dentro. E torna-as mais amigas da beleza e do brincar. E -
muito pior... - torna-as mais engenhosas para conhecer. E, dum jeito
misterioso, encaminha-as para considerar que, sejam elas quais forem, todas as
histórias parecem ter sido, delicadamente, preciosamente, unicamente... escritas
para elas.
As histórias fazem mal às
crianças! Porque elas fazem de conta;
e isso é mau. Porque põem-nas no lugar do outro (que, nesse mesmo momento, se
torna parte de si). E as leva, literalmente, a fazer de... conta (não de
número). Isto é, puxa-lhes pela cabeça para que entendam que as histórias se
lêem pelas entrelinhas, com tudo aquilo que nos sugerem - subtraia ou
multiplique, divida ou acrescente - por mais que não pareça. E são, por isso,
mais amigas da matemática do que se supunha.
As histórias fazem mal às
crianças! Porque as desarrumam por
dentro; e isso é mau. Porque, se for preciso, as histórias são rebeldes (e, em
vez de pintas nos is as põem nos és). E nem todas são compenetradas (há quem
diga que trazem macacos para o sotão ou que põem minhocas na cabeça). E - pior,
ainda - há quem garanta que elas geram nervoso miudinho (que torna as crianças,
perigosamente, mais curiosas e mais audazes).
As histórias fazem mal às
crianças! Porque ensinam a
re-conhecer; e isso é mau. Reconhecer de conhecer outra vez. Reconhecer de
conhecer melhor. E reconhecer de estar grato a quem gosta de nós e nos dá ao
conhecer ao mesmo tempo. Porque isso as inicia na magia de duas pessoas se
co-moverem uma para a outra. Porque só se comove quem se co-move! E essa
comunhão torna as crianças sábias e serenas. E só isso faz que, quando escutem,
as crianças fechem os olhos para ver.
As histórias fazem mal às
crianças! Mas são, ainda assim, a
sobremesa do pensamento e a digestão de tudo aquilo que se aprende; e isso é
mau. Porque se tornam necessárias e insubstituíveis e lhes dão uma gramática
para tudo aquilo que se vive. Porque as educam para que duas imaginações que se
puxam uma à outra são como um abraço (e isso faz com que percebam que um abraço
são dois colos que se dão um ao outro ao mesmo tempo). E ensinam, como mais
nada, que - por mais palpável que seja aquilo que se crie - todo o conhecimento
começa numa história e, volta a ela, depois de construído. O que faz com tudo
seja, para além do que parece (como as histórias, aliás) um património
imaterial da Humanidade.
Por tudo isto, deixem-se de... “histórias”! E contem histórias!
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